quarta-feira, 12 de junho de 2013

PAUSA - Moacyr Scliar.

Pausa
"Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu­se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
—Vais sair de novo, Samuel?
Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém­feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.
— Todos os domingos tu sais cedo — observou a mulher com azedume na voz.
— Temos muito trabalho no escritório — disse o marido, secamente. Ela olhou os sanduíches:
—Por que não vens almoçar?
— Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche. A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:
—Volto de noite.
As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente, ao longo do cais, olhando os guindastes,as barcaças atracadas.
Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras.
Deteve­se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs­se de pé.
—Ah! Seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
—Estou com pressa, seu Raul!— atalhou Samuel.
— Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre. — Estendeu a chave. Samuel subiu quatro  lanços de uma escada vacilante.
Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam­no com curiosidade:
—Aqui,meu bem!—uma gritou, e riu: um cacarejo curto.
Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave.
Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda­roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou­o na mesinha de cabeceira.
Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido;  com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou­se e fechou os olhos.
Dormir.
Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover­se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos. Um raio de sol filtrou­se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido. Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia­se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou­se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá­lo com a lança. Esvaindo­se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois,silêncio. Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou­se. Vestiu­se rapidamente e saiu. Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
—Já vai, seu Isidoro?
— Já — disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio.
—Até domingo que vem, seu Isidoro — disse o gerente.
—Não sei se virei—respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.
— O senhor diz isto, mas volta sempre — observou o homem, rindo. Samuel saiu.
Ao longo do cais, guiava lentamente. Parou, um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois, seguiu. Para casa."


SCLIAR, Moacyr. In:BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. SãoPaulo: Cutrix,1997

Nenhum comentário:

Postar um comentário